Seca

1.
Esta pessoa não chorava. Não que não sentisse, não que não doesse, mas a pessoa não chorava.
"Não penso muito nisso, deve ser um capricho qualquer dos meus olhos" costumava dizer.

Não pensava aquela pessoa, mas começaram a pensar as outras, já que todos viviam num sítio onde as lágrimas eram muito importantes; mais importantes que a beleza das coisas e dos sentimentos. Muito mais importantes que as próprias pessoas.
2.
Ali, quem decidia sobre tudo e todos era um Mandão que respirava lágrimas, o que obrigava toda a gente a carregar sempre um pequeno copo para recolher tais preciosidades, as suas e as alheias. Uns faziam-no para agradarem ao Mandão; outros a pensar que agradavam; e outros arrastados por o resto. No fundo todos o faziam menos ela, a pessoa.

Aos poucos e aos muitos este não-choro propagou um incómodo na maralha, sobretudo no Mandão, e, num esforço concertado, tudo começou a ser feito para que daqueles olhos saísse uma lágrima que fosse, como se a vida de toda gente dependesse disso. Não dependia, mas era como se sim. Até o Mandão conspirou. Contaram-lhe histórias, magoaram-lhe a alma e o corpo, roubam-na, levaram-na a voar por gelos e fogos, iluminaram-lhe os olhos, mataram, morreram... e nada. Nenhum líquido salgado ou insonso brotou daqueles globos pintados com verde.
3.
Todo aquele alarido afastou-a, entristeceu-a, redundando numa decisão espontânea e instintiva - empurrada pela raiva, começou a correr. Correu. Muito. Sempre. Até não ver ninguém nem nada. Até à solidão; até ao esquecimento; até si...
4.
Quando finalmente parou, vencida pelo cansaço das pernas e pela ilusão da liberdade, a pessoa reparou estar junto a algo, que, sendo quase ínfimo, se destacava na imensidão daquele vazio. Não era uma flor, mas parecia. Tratava-se de uma pequena cipsela de gotículas que brilhava todas as cores, cheirava a todos os perfumes, assobiava todas as sinfonias. Pegou-lhe delicadamente, num gesto que atravessou o ar sem o mexer.

Porém, ao suspirar a fadiga, com um suave sopro desintegrou a cipsela numa imensa nuvem de um fino pó que se espalhou por todo o lado entranhando-se nas narinas, na boca, nos olhos - nos olhos. Subitamente, talvez por irritação talvez por outro motivo qualquer, aquela intrusão provocou uma... lágrima, pequenina, que rapidamente caiu até se misturar com o pó espalhado pelo chão.
5.
Quando voltou a abrir os olhos, a pessoa reparou que estava cercada por infinitas cipselas que brilhavam, cheiravam e melodizavam como a original. Sorriu...
(Sorriu?)

FIM

(...para os mEus filhos, enquanto esperávamos no carro um dia destes...)